sexta-feira, 14 de junho de 2013

José e Pilar


"Se tivesse morrido antes de conhecer Pilar, tinha morrido mais velho que sou"

Não sou de assistir documentários. Sou fãnzaço de Tom Zé, de Manoel de Barros, e acredito que, por exemplo, os documentário feitos sobre esses artistas haviam transcendido a simples missão de informar e passaram a tocar, emocionar a quem a eles assistia. O que ocorre, porém, é que eu não tinha noção do que é se emocionar em um filmes desse tipo. Que não me deixe mentir quem já viu "Só dez por cento é mentira", não precisa ser nenhum leitor assíduo de Manoel para entender sua genialidade e sentir-se profundamente encantado com o que do autor é mostrado no filme, nem precisa ser especialista em Tom Zé para se sentir empolgado e muito bem representado quando, em seu documentário "Fabricando Tom Zé", ele desatina a falar da questão dos suíços (veja o vídeo aqui). Todos esses, e muitos outros documentários, extremamente dignos e plausíveis, mas nada, nenhum outro filme do gênero que eu já vi, consegue ser comparável a "José e Pilar".

Se a literatura faz parte dos seus dias, se você pensa que leitura enriquece o ser humano e é que ajuda em grandes termos a moldar o caráter das pessoas, e/ou se você for fã literatura da Língua Portuguesa, e, ainda mais, de José Saramago, então "José e Pilar" é o filme para você. Se você tem ideias políticas, se apoia os movimentos sociais modernos, a luta feminista, e se você é a favor da liberdade religiosa, então "José e Pilar" também é pra você. Se o que lhe apetece é filosofia, existencialismo, sociologia, o papel do homem na vida comum e o seu poder, então esse filme também é para você. Se histórias de amor brilham seus olhos, então esse é o documentário certo.

Sábio é o pensamento dos nossos ancestrais que nos ensinou que por trás de um grande homem sempre há de existir uma grande mulher. Se, por uma gama infinita de exemplos que se pode dar para comprovar a veracidade da sentença não convencer, "José e Pilar" surge e concretiza a afirmação como uma das grandes leis que regem o nosso universo. O filme, que conta a história, de maneira bastante íntima e acalorada, do relacionamento e do amor entre José Saramago e a jornalista espanhola Pilar del Río, mulher com quem o escritor foi casado durante 24 anos (até a morte de Saramago, em 2010), mostra de maneira significativa como a presença de um influencia e engrandece o trabalho do outro. 

"Eu tenho ideias para livros, ela tem ideias para a vida"

Abordando o espectador numa atmosfera muitíssimo envolvente, o diretor relata, de dentro da casa do casal, o retrato dos dias de rotina do casal. Isso faz com que quem assiste ao documentário acabe criando os seus próprios laços de ternura com o escritor e sua esposa ali representados. É como se você passasse a sentir, a ter como querido tanto a José como a Pilar.

Com as gravações iniciadas em 2004, o filme acompanha todo o processo de criação do livro A Viagem do Elefante, penúltimo escrito em vida por Saramago, e é finalizado apenas em 2008, e lançado em 2010. Saramago não teve a oportunidade de ver a edição final de seu próprio documentário, pois, infelizmente, veio a falecer fisicamente em 2010, porém, pôde ver uma película não finalizada com mais de três horas de gravações.

Coincidentemente sendo filmado durante os últimos anos da vida de José Saramago, é realmente de encher os olhos de emoção e comoção ao ver o autor de "Ensaio sobre a cegueira" falando, por exemplo, sobre a morte que dele se aproxima (e ele tem noção desse fato), sobre a ideia da sua finitude, sobre a sua própria mulher, Pilar, que, sem exagerar, toma conta e modela a vida do escritor. Abaixo, um pequeno trecho onde Saramago diz sobre a morte e a humanidade, e que eu, particularmente, achei um dos momentos mais bonitos de todo o documentário.

"O ideal de vida é ser árvore. Árvore está ali, alimenta-se diretamente do chão, da terra, cresce, abre-se, dá flores se é árvores para dar flores, ou frutos se é... E vive o tempo que tenha de viver. Uma sequóia vive mil anos, há oliveiras no nosso mais que são centenárias, e várias vezes centenárias. Mas tudo acaba. Tudo acaba. Essa ideia de que a Terra é assim, sempre foi assim e sempre há de ser assim, não. Um dia desaparecerá. Um dia desaparecerá o Sol, apaga-se o Sol, desaparece o sistema solar, e acabou. E o universo nem sequer se dará conta que nós existimos. O universo não saberá que Homero escreveu a Íliada. E porque tinha o universo de saber isso, como é que o iria saber?"


É internacional a fama das opiniões do escritor para os assuntos mais diversos possíveis, desde pedagogia até economia e política e, de maneira muito mais difusa, também sua opinião sobre religião, sobre a instituição da igreja, sobre a existência de Deus. Por isso, o documentário se torna extremamente completo, complexo, e abrangente, deixando de ser apenas uma retratação dos dias de Pilar e José, passando a ser um exemplo de vida a ser seguido, exemplo de humildade e auto-consciência, exemplo de amor e de apoio, transcendendo, assim, todas as barreiras do cinema.

É claro, também, que as polêmicas que Saramago causava com suas opiniões bastante incisivas e francas, não agrada a todos. Depois da publicação de seu livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo" (sobre o qual já falamos aqui no blog) por exemplo, até as mais altas autoridade de Portugal deram seus parecerem contrários e de repúdio ao autor. Além disso, as suas opiniões políticas são claras e abertamente esquerdistas, e o documentário acaba por abarcar também até como essas repercussões negativas afetam ou deixam de afetar o animo de José Saramago para a escrita. Este vídeo humorístico é sobre uma carta que o filme mostra José e Pilar recebendo.

Uma das partes mais interessantes do filme, já adiantando um pequeno spoiler, mas para aguçar a vontade de quem ainda não o viu, é a retratação da peça, baseada em um dos livros saramaguianos, do próprio autor com o famoso ator Gael García Bernal. Também, a cena do encontro de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a cegueira (filme), com Saramago,ro e a comoção emocionada dos dois ao final da primeira exibição, em Cannes, de Blindness é de tirar o fôlego.

Se, por um lado é extremamente poético ver e ouvir a vida e as ideias do português, por outro, acompanhar a sua agonia ao passar por algumas doenças durante seus últimos anos, ver a consciência esperançosa nos olhos da Pilar para prolongar até o final do dia a vida de Saramago, observar como a jornalista aguenta e suporta todos os maus caminhos que tem que percorrer para aliviar as dores de seu marido é, senão pior, muito, muito cruel. Ver, que mesmo para quem mais merece viver, a vida é fragilíssima, ter a consciência de sempre estar "por um fio", é desolador.

"Que tenhamos mais tempo..."

Confesso que foi uma grata surpresa pegar o documentário sendo exibido na TV, confesso que extremamente emocionado e encantado são palavras de significado pequeno perto do que eu senti ao final da exibição, e confesso também que depois deste filme, José Saramago se tornou uma das pessoas que eu mais admiro. Um exemplo de superação, de afirmação no mundo, de amor ao próximo, de humildade. Ele, sim, tem vida eterna.

Avaliação: