sábado, 4 de maio de 2013

Angústia


Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição.

Um romance sufocante! A primeira impressão que bate, após o fechamento do livro, principalmente depois de um último capítulo tão incrível, a primeira impressão não pode deixar de ser esta: que sufoco. Se existe obra que teve um título tão bem escolhido, tem de ser esta, 'Angústia', do Graciliano Ramos, que vai narrar as vivências de Luís da Silva, um funcionário público de meia idade. Talvez seja um dos mais aclamados romances desse autor tão importante na literatura brasileira, e, mesmo apesar de não ter lido às outras obras de Graciliano, não creio que seja injusto dizer que esse não seja digno de tal proeza.
Estruturalmente, o livro pauta-se numa escrita muito próxima à tradicional, sem as famosas quebras de estrutura, tão utilizada por autores que instalaram o modernismo no Brasil. De maneira geral, quase sempre são frases curtas formando parágrafos curtos. Há, por isso, uma quebra na fluidez da leitura, deixando o livro, muitas vezes, um pouco pesado de se ler. A estrutura em que o autor escreve o livro, contribui enormemente para refletir o caráter e os sentimentos da personagem principal, mas disso cuidaremos mais tarde. Não é uma leitura das que se diga mais estimulantes por sua estrutura, mas, penso, essa é exatamente a intenção do autor. Apesar de uma estruturação hegemonicamente tradicional, a linguagem utilizada é bastante oral e simples, mesmo Graciliano deixando claro a pureza vocabular e pulcritude de Luís da Silva. O personagem chega a afirmar que os erros gramaticais e a falta de sintaxe o irritavam.
Mas é longe da esfera estrutural que 'Angústia' vai mostrar o seu valor maior.
A estória é contada em primeira pessoa por Luís da Silva, que narra meandros das suas próprias experiências. Mas isso vai se dar de uma maneira extremamente complexa. Primeiro, o narrador conta com maior riqueza de detalhamentos e explicações o que viveu nos meses que compreendem a chegada e estabelecimento da família de Marina, personagem por quem Luís rapidamente simpatiza-se, e o acontecimento de maior importância da obra (que não compete à mim dizer qual é!). Porém, durante o relato desses ditos meses, Luís da Silva vai contando também trechos, flashbacks, memórias da sua infância, acontecimentos que o levaram até ali, e que vão ajudar o leitor na concepção mais aprofundada da personagem. Como se não bastasse, no último capítulo o autor ainda inclui uma terceira linha de narração, que é a de um passado-presente, uma compreensão de o que sucedeu e como se encontra o personagem após o fim da história.
Com uma personalidade melancólica, triste e solitária, Luís da Silva narra as tristes nuances que acometeram os seus dias. Desde criança, sozinha, sem poder brincar com as outras crianças, às andanças pelo sertão e até chegar aos dias atuais, dias que, claramente, vão sufocando e degradando cada vez mais o "protagonista". 
A rotina, o trabalho de articulista e redator numa pequena repartição pública, o salário pouco, as contas em exagero, o aluguel, a infância sofrida, as lembranças que vão cada vez mais desfalecendo-se, sentimentos de inutilidade, de desprezividade, sentir-se desfocado, não pertencente a nenhum grupo, não identificar-se com ninguém, agir maquinalmente, sem ter gosto propriamente dito naquilo que faz, são apenas ~alguns~ dos motivos que corroboram para fazer crescer o desgaste e a angústia de Luís da Silva. E, como anteriormente dito, a estrutura pausada em que o livro é escrito, auxilia em muito para transcender a ideia de melancolia e de uma tristeza empalidada. Às vezes, o próprio passar das páginas é ação duvidosa ao leitor, que se encontra no dilema de continuar encarando aquelas sucessões de tristes e monótonas confissões ou não.
Colocando às vezes o valor da própria vida em cheque, e de certa forma interrogando e respondendo como o exterior pode vir a nos influir, Graciliano Ramos descreve de maneira bem clara traços de existencialismo na personagem de Luís da Silva. 
Pela forma com que conduz a estória (uma narrativa maior, que abrange o tempo que se inicia com a chegada de Marina, e várias narrativas menores, que contam a vida de Luís desde sua infância) é normal que se confunda frequentemente uma coisa e outra, sendo difícil de distinguir o que são memórias, o que é o presente no tempo da narrativa, e o que é apenas uma especulação por parte da personagem, ou seja, seus pensamentos e sentimentos, 'Angústia' vai tecendo o seu principal valor. O último capítulo, porém, vai colocar tudo em cheque, mas aumentará a necessidade e importância dessa obra (apesar das possíveis semelhanças com Dom Casmurro...).
Afinal, pelo modo tão peculiar de narrar através de flashes de memória e lembranças mais concretas, pelo jogo com o existencialismo, pelo final muito bem feito, 'Angústia' consolida-se como um ótimo livro, apesar, novamente, da provável dificuldade e desânimo que a leitura pode causar.

Avaliação: